Gustavo Ioschpe
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A
primeira coisa que chama a atenção nas aulas é a disciplina. Para um ocidental,
e ainda mais brasileiro, parece até exagerada
Fui
para a China em outubro, já esperando ver escolas diferentes da realidade
brasileira, por tudo o que havia lido a respeito e pelo próprio resultado do
PISA. Em dez dias de viagem, visitei cinco escolas. Mas mesmo todo o preparo
não foi suficiente para, de início, afastar a impressão de que tudo aquilo que
eu estava vendo era uma farsa, uma campanha de propaganda cuidadosamente
elaborada pelo governo chinês para iludir esse forasteiro. Foi só depois de
conseguir visitar escola sem o conhecimento ou consentimento do governo, de
checar os rankings das escolas visitadas e de falar com uma série de alunos e
ex-alunos chineses que me convenci de que o que estava vendo era uma boa
representação da realidade.
A primeira diferença é do espaço físico, especialmente da limpeza e do
cuidado. Os
pisos das escolas eram imaculadamente limpos, e em duas ocasiões presenciei
algo que nunca vi no Brasil: o diretor ou vice-diretor que nos acompanhava se
agachando para recolher um pedaço de papel caído. As escolas têm três ou quatro
andares. São escolas grandes, a maioria com mais de mil alunos. O sistema
chinês é dividido em três níveis: o “Elementary”, do 1º ao 6º ano; “Middle”, do
7º ao 9º, e o “High School”, de três anos.
Não visitei nenhuma escola que tivesse os três níveis. A maioria tinha apenas um
nível, ou no máximo dois (middle e high). Em algumas escolas cada série ocupava
um andar. Essa organização do espaço é relevante. Pois em cada andar há uma sala
de professores, e essa divisão permite que professores das mesmas séries
estejam em contato frequente e tenham a formação do seu grupo de estudos
facilitado. A sala de professores não tem nada a ver com esse espaço social e
descontraído dos colégios brasileiros: em Xangai, cada professor tem o seu
cubículo, em que guardam livros e materiais de sua disciplina e onde também há
um computador, onde preparam o material de aula.
O
mais marcante, porém, são as salas de aula. O espaço físico é parecido com as
congêneres brasileiras, em termos de dimensão e formato. Tudo bastante simples.
Só há três diferenças em relação às nossas salas de aula. A primeira é que,
tanto em Xangai quanto Pequim, há uma bandeira da China sobre todo quadro-negro.
A segunda é que há um data show, através do qual os professores mostram
material didático através de apresentações de Power Point. O terceiro é que há
vassoura e pá ao fundo de todas as salas: cabe aos alunos a limpeza do seu
ambiente. Há equipe de limpeza nas escolas, mas elas só tomam conta das áreas
comuns.
Acompanhei várias aulas de várias séries diferentes. Todas começam da mesma
maneira. A professora não se atrasa, nem os alunos. A professora, de pé, então
se inclina em direção à classe e diz: “bom dia, alunos”. Os alunos então se
levantam, se inclinam em direção à professora e, em uníssono, respondem: “bom
dia, professora”. Eles então se sentam e a aula inicia.
Não há chamada nas aulas chinesas. Cada turma tem um professor que é designado o seu “head teacher” (professor responsável, em tradução livre), que deve ter um contato mais aprofundado com aquela turma, conhecer seus alunos, suas famílias etc. Uma vez por dia, em horário aleatório, o professor responsável passa pela turma e vê se tem alguém faltando. Se há, ele deve ligar para seus pais para saber o que está acontecendo. Caso todos estejam lá, o professor dá uma espiada e vai embora. É um detalhe simples, mas pense em seu efeito. Se você tem oito períodos por dia e gasta, digamos, três minutos fazendo chamada, quase meia hora de aula do dia terá sido desperdiçada com esse ritual. Ajuda o fato de que quase ninguém falta, claro. Nem alunos, e muito menos professores.
No
meu primeiro dia na China, em Pequim, conversava com uma diretora de escola,
Cui Minghua, 55. Perguntei a ela se o absenteísmo de professores era um
problema sério. Ela me olhou algo incrédula, conferiu a pergunta com a
tradutora. Pra simplificar, perguntei quantos professores, em média, faltavam
num determinado dia (a escola é muito grande, com mais de 4 mil alunos).
“Nenhum”, ela me disse, ainda sem entender muito onde eu estava querendo
chegar. Então lhe expliquei que em muitos lugares do Brasil o absenteísmo de
professores era um problema sério, que causava o cancelamento de aulas, a perda
de ritmo de ensino etc. A sra. Cui me pareceu um pouco incrédula, e me contou a
sua história para explicar o porquê de sua incompreensão. Ela estava na
carreira há 32 anos, sendo mais de 20 deles como professora. Em todo esse
tempo, tirou uma licença médica para realizar uma operação, mas fora isso não
teve falta nenhuma, em nenhum ano.
O sistema é realmente organizado para que o tempo seja utilizado de
forma efetiva. As
aulas têm quarenta minutos de duração e dez minutos de intervalo entre elas, ao
contrário do sistema brasileiro, em que a maioria das escolas adota aulas de 50
minutos, sem intervalos, exceto o recreio. Como os professores precisam mudar
de aula (na China também), é óbvio que esse horário é inexequível. O professor
brasileiro sempre vai chegar na aula atrasado, e como o atraso é inevitável e
sua duração é incerta, o professor tem a liberdade de demorar o que achar
necessário, e os alunos podem fazer a balbúrdia que bem entenderem. Na escola
chinesa, os horários são cumpridos à risca, e os alunos sabem quando a
descontração começa e quando ela terá de terminar. Quando a professora chega à
aula, todos estão prontos para começar a lição.
A
primeira coisa que chama a atenção nessas aulas é a disciplina. Para um
ocidental, e ainda mais brasileiro, parece até exagerada. A separação entre as
carteiras é milimétrica, e todas as mesas estão perfeitamente alinhadas em
relação à parede frontal. As cadeiras, por sua vez, também estão alinhadas com
as carteiras, e todos os alunos sentam de frente para o quadro negro, costas
eretas e pernas dentro de suas mesas. Na maioria das classes que visitei havia
entre 30 e 35 alunos, mas a média de Xangai é mais alta, de mais de 40 alunos
no middle school e 38 no high school.
O que mais chama a atenção é que não há “turma do fundão”, conversas
paralelas ou problemas de disciplina. Não vi um único aluno pedindo para ir ao banheiro nem,
muito menos, celular tocando. Em quase todas as aulas que presenciei, a
professora tinha o total domínio da situação e mantinha a atenção de todos os
alunos, todo o tempo. Pra quem está acostumado com salas de aula em que uma
minoria costuma prestar atenção e vários outros grupelhos paralelos se formam,
cada qual falando sobre o seu assunto, foi incrível ver uma sala assim. Nas
aulas chinesas, o valioso e escasso tempo de contato entre professores e alunos
é usado para ensinar. A organização da aula costuma ser assim: a professora
começa recapitulando onde pararam e o que aprenderam na aula passada,
rapidamente. Depois explica o conteúdo novo. Então faz alguns exercícios, com o
auxílio do data show, em que a ideia subjacente ao conteúdo é explicitada e
testada.
Sempre
que possível, esses exercícios são feitos repetidamente, sob prismas
diferentes, pra ter certeza de que o aluno entendeu o princípio e não apenas se
tornou um resolvedor de problemas. E os exemplos usados eram, várias vezes,
ligados a temas de interesse dos alunos. Assim, por exemplo, quando estive em
uma aula de Matemática da 3ª série e a professora queria ensinar a calcular o
perímetro de uma superfície, ela usou o exemplo de uma quadra de basquete, um
dos esportes mais populares do país. Mostrou que aquela quadra tinha 28 metros
de largura por 15 de altura, e então ensinou como o perímetro podia ser
derivado: somando-se todos os lados (28+15+28+15), somando a altura com a
largura e multiplicando por dois [(28+15) x 2] e duplicando cada lado para
depois somar [(28x2)+(15x2)]. Abre-se então uma sessão de perguntas e
respostas, que tem um ritual peculiar: quando a pergunta é feita, várias mãos
costumam ser erguidas. Os alunos têm ânsia de participar. E todos levantam a
mão exatamente da mesma maneira: o braço é levantado na altura do ombro,
paralelo à mesa de cada um. Quando um aluno é selecionado pelo professor, ele
ou ela se levanta antes de responder e se senta logo depois. Depois desse
momento, costuma haver um tempo em que os alunos trabalham sozinhos, fazendo
exercícios. Perto do fim da aula, a professora corrige alguns desses problemas,
normalmente pegando os cadernos de alunos com dificuldades e os mostrando a
todos, mesmo que tenha erro. Se aquele aluno estiver errado, alguém com a
resposta certa será encontrado e explicará a resposta certa para a turma. E,
importante, a professora volta ao aluno que havia dado a resposta errada e fica
com ele para ter certeza de que entendeu onde errou e como a resposta certa diferia
da sua. O circuito é fechado.
Esse
microcosmo mostra três dimensões importantes da educação chinesa: disciplina,
transparência e foco no aprendizado de todos os alunos.
A disciplina é visivelmente ensinada pela escola. Não é possível imaginar que crianças e adolescentes tenham um impulso natural de se levantar para responder uma pergunta ou que levantem o braço.
Sem
um mínimo de disciplina e ordem, em que o professor possa se fazer ouvir, não é
possível dar aula. E sem um sistema em que todos os alunos são ativamente envolvidos
pelo professor e em que os grupos, conversas ou interesses paralelos são
dissolvidos, não é possível haver disciplina. Como no Brasil ainda se confunde
ordem com autoritarismo, a desordem também é confundida com liberalidade, e
dessa bagunça não sai aula que preste.
Os resultados mensais dos alunos são exibidos para toda a comunidade escolar. Todo aluno sabe como está o seu desempenho em relação aos seus colegas de turma e de escola. Em um sistema muito competitivo e justo, essa transparência é quase indispensável. Porque a educação chinesa é uma corrida constante, em que apenas os melhores e mais esforçados alunos conseguem chegar às boas universidades.
Como
o número de alunos das escolas técnicas não é pequeno – na China como um todo,
47% da matrícula no ensino médio está em escolas técnicas/vocacionais – e, por
outro lado, a competição para entrar na universidade é muito acirrada, não dar
ao aluno e seu pai a noção exata de onde ele se encontra durante o decorrer de
sua vida escolar e quais são suas reais perspectivas seria quase criminoso.
Ademais, ajuda o fato de que a transparência é para todos: também os
professores recebem notas que são divulgadas entre seus colegas, e também cada
escola é ranqueada em seu distrito e tem sua posição divulgada publicamente. O
aluno não tem razão para se sentir injustiçado ou perseguido, portanto: o
sistema é o mesmo para todos.
O
que contrabalança toda essa cobrança e rigor é o inegável compromisso de todos
os educadores chineses – do professor primário da escola do interior ao
ministro – com o efetivo aprendizado de todos os alunos e com o seu bem-estar
em geral. A China ainda ostenta um forte sentimento de patriotismo e de
comunidade. Não foram poucos os alunos com quem conversei que disseram ter
vontade de ficar no país para ajudar a construir um projeto coletivo de futuro.
Um mestrando me disse explicitamente que recusaria ofertas salariais mais altas
de empresas estrangeiras, para poder ficar no país. O sentimento de lealdade
familiar e, por extensão, à coletividade mais ampla está arraigado na cultura
chinesa de uma maneira que é difícil para um ocidental compreender. É paradoxal
que um país de 1,3 bilhão de habitantes se comporte de modo algo provinciano,
como uma grande família, mas é verdade. E em nenhuma área esse desvelo é mais
evidente do que na educação, que representa um enorme esforço dos chineses
adultos para com a próxima geração.
Hejio Jiang, 14 anos, é aluna da escola de Xangai que visitamos em
segredo.
Ela
é aluna top 5 da sua aula e top 15 da sua série. Ano passado, suas notas
subitamente caíram, e ela ficou em 36º lugar na série. Sua professora a chamou
para uma conversa particular. Não para cobrar, reclamar ou dar bronca, mas para
saber o que estava acontecendo. Quis saber como andavam as coisas em casa, se
havia brigas, como andava o trabalho do pai etc. Quis entender o que estava
acontecendo e se colocou à disposição para ajudar. Notando que não havia nenhum
problema familiar, entrou em contato com os pais e, juntos, trabalharam para
que Jiang voltasse a ser uma aluna top, o que efetivamente aconteceu. Os
cuidados também se manifestam nas áreas mais simples, como o físico. Nessa
escola, me chamou a atenção que 16 dos 25 alunos de uma turma que visitei
usavam óculos. Perguntei ao diretor que nos acompanhava se a escola fazia
testes visuais. Ele me explicou que não apenas aquela escola, e não apenas
testes de visão: em todas as escolas da China todos os alunos passam por um
exame físico básico a cada ano. Médicos e enfermeiros vêm à escola e passam um
dia examinando os alunos, verificando visão, audição e saúde geral. Confirmei a
informação nas outras escolas em que visitei.
Na China, o sistema realmente se importa com cada aluno. Essa talvez seja, em
síntese, a razão do sucesso da educação chinesa: ela combina a competitividade
dos americanos com o cuidado e amparo dos melhores sistemas europeus. A
competição, sozinha, tem gerado comportamentos antiéticos e a seleção e
priorização dentre o alunado. E os sistemas sem nenhuma competição e cobrança,
em que tudo é oferecido e pouco é exigido, acabam se tornando complacentes. O
Brasil não faz nenhum dos dois – bane a competição por inclinação ideológica, e
o fracasso acadêmico dos alunos mostra que a preocupação com sua formação é
conversa mole. A China está conseguindo unir as duas vertentes. Pode cobrar e
exigir muito do aluno porque ele sabe que é pro seu bem, que o sistema visa os
seus interesses. E também porque o sistema é justo. Não apenas cobra de todos
os alunos, mas cobra ainda mais de seus professores.